Ainda são possíveis encontros em espaços públicos
Movimento Dulcynelandia e Ocupação Manuel Congo celebram os 100 anos de Dulcina de Moraes e mostram que o espaço público ainda pode promover encontros
Neste domingo, dia 20 de julho, estive presente na comemoração do centenário de Dulcina de Morais, promovido pelo Movimento Dulcynelandia, em frente ao teatro (fechado!) que leva seu nome, na Rua Alcindo Guanabara, 7. Fui ao ato na qualidade de expectador – entre os meus objetivos estava o de assistir à leitura de ‘Luz e Sombra’, que escrevi com a Alexandra Arakawa (e que acabou sendo magistralmente engolida pela voragem antropofágica dos fatos). E nessa condição escrevo meu breve depoimento do que vi por lá.
Quando cheguei ao local, tudo parecia ainda um tanto incipiente. Mal suspeitava que a polícia já houvesse passado por lá e levado um dos palhaços para prestar esclarecimentos – desconfio que ele não deva ter achado muita graça nisso. Também não sabia da queda de luz e dos vários percalços já enfrentados até ali. E, acostumado por vício de profissão à repercussão midiática dos fatos, ainda questionava qual seria a efetividade daquilo que ainda estava se construindo. Sem intuir, no entanto, o que ainda estava por vir.
Se o vício de profissão me levava a questionar a efetividade daquele ato – o primeiro dos 100 chutes simbólicos nas portas fechadas do teatro – um outro vício, o do escritor que sou, deixava-me com os olhos e os ouvidos atentos ao instante. Sim, estava pronto para colher o momento que passa (esse “inquietante animalzinho, todo asas e todo patas” que, nas palavras de Quintana, “ardia como uma brasa, trepidava como um motor, dava uma angustiosa sensação de véspera de desabamento”.). E o momento que passa estava grávido das possibilidades que adviriam do improviso antropofágico, do encontro, do movimento.
Pouco depois da minha chegada, a roda de coco e ciranda “A Pisada” ditou o ritmo dos acontecimentos. O sentido pelo qual eu estava procurando logo na minha chegada parecia querer esboçar sua face para minhas retinas. E ele residia na celebração da possibilidade de encontros num espaço público. Mas ainda era um esboço de sua face que me chegava, pela celebração quase ritualística do canto e da dança – essas formas artísticas tão profundamente ligadas às formas mais primordiais do culto ao sagrado.
O Ensaio Aberto da quadrilha da Ocupação Manuel Congo foi para mim o ponto que desencadeou o inesperado, o surpreendente, o maravilhamento que a face do real tem quando supera o ideado. E talvez a força desse ensaio aberto tenha vindo do casamento perfeito de duas formas de espontaneidade: a da criança e a do artista. A partir dali, as crianças e os artistas comungaram no engendramento do caminho fluvial dos fatos. A beleza passou a transbordar nas brincadeiras, nas danças, na correria, na explosão do lúdico no meio da rua, sem pudores nem censuras. As fotos das crianças, dos palhaços e das danças, das cores e das imagens projetadas nas portas fechadas do Teatro Dulcina e nas retinas de todos ali presentes não me deixam mentir. Esse transbordamento de beleza e de euforia infantil, essa voragem antropofágica dos fatos engoliu muito do planejado – entre os quais a leitura do texto que eu tinha ido ali para ver. Mas engoliu pela força dos acontecimentos, com a magia dos feitiços peculiares às crianças e aos artistas. Tudo isso, sem esquecer do parabéns à Dulcina e da distribuição do bolo, feito em parceria pelo Movimento Dulcynelandia e pela Ocupação Manuel Congo.
Após a ida do DJ, a conversa entre aqueles que permaneciam ali, a troca de histórias, idéias e experiências (que me é tão cara, rara e preciosa, já que é material para o que escrevo) terminou de esculpir para mim a face do sentido e da efetividade daquele ato. Estava claro que em tempos onde a rua é vista quase como um obstáculo a ser transposto, é uma grande vitória celebrar a rua, o espaço público – tão esvaziado – como local de encontro, de troca, de arte e de luta. Voltei para casa, dentro do ônibus, pensando nisso. E lamentando o fato de não poder estar presente no próximo chute simbólico nas portas fechadas do Teatro Dulcina, que vai acontecer no dia 03 de agosto, já que estarei de volta a São Paulo...
Mesmo assim, acredito que um pouco do meu pé estará neste segundo chute, assim como a lembrança deste primeiro estará bem viva dentro de mim.
Teofilo Tostes Daniel